sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A desconstrução da criança: o mito da maturidade precoce


Estamos em um tempo histórico, em que a criança está tendo muita visibilidade. Especialistas de diversas áreas do conhecimento teorizam a respeito da criança e da infância. Ora superprotegida, ora com imensos poderes, a criança tem sido também alvo de consumo, acesso a tecnologia, legislação e tudo o mais que faça com ela seja quase comparada a um adulto. Estamos assim, imersos em uma cultura que coloca a criança como um sujeito universal, embora convivamos com a separação entre o mundo infantil do mundo adulto. Paradoxalmente, mesmo sabendo da coexistência desses dois mundos, vivemos em um que exige da criança uma maturidade, que ela não pode apresentar.
Reconhecer e dar às crianças visibilidade não significa fazê-las virar heróis e muito menos levá-las ao mesmo tratamento que dispensamos aos adultos. A infância, primeiro estágio de evolução na vida humana, deve ser cuidada com atenção, mas não como sendo um “momento privilegiado” dessa evolução humana. O desenvolvimento humano é um processo que vai do nascimento à morte, e em cada momento desse desenvolvimento há necessidade de cuidados especiais às pessoas. Em todo esse processo, o ser humano está sujeito a conflitos, a necessidades biológicas e sociais. Portanto, cada período do desenvolvimento humano é essencial. Sendo a criança um ser de grande potencial de aprendizagem, cabe a nós, adultos, pais e educadores, oportunizar a ela condições sociais, culturais, ambientais e biológicas para que o seu desenvolvimento aconteça de forma natural e até mesmo prazerosa. Em condições de segurança emocional e conforto psíquico, o que as crianças necessitam é de tranquilidade para viverem o seu desenvolvimento.
A ansiedade do mundo adulto não pode contribuir para a desconstrução da infância. Os adultos interpretam que a potencialidade da criança e o seu futuro como adulto dependem do desenvolvimento de habilidades ainda na infância. Por isso mesmo, crianças da Educação Infantil têm sido “atropeladas” em seu desenvolvimento com uma enorme carga de responsabilidade que não condiz com a maturidade humana nessa etapa da evolução. Eu tenho visto crianças com agenda de adulto. Será que isso contribui mesmo para que a criança chegue com sucesso na fase adulta? Tenho visto tamanha exigência de performance às crianças muitas vezes estressante e exagerada. O sujeito infantil tem necessidade de aprendizagem e de relação sociocultural típico de uma fase e de sua maneira de se relacionar com o mundo a sua volta.
Nós, adultos, não podemos nos colocar como os intérpretes do mundo infantil. Na verdade, ele fala por ele mesmo. Ao interferirmos nesse mundo, a partir da visão e interlocução que temos dele, como adultos que somos, estaremos sim encurtando o tempo da infância. O que a criança necessita é de ter a oportunidade de exercer o seu pensamento sincrético que traduz e interpreta o mundo de seu jeito. Quando queremos que a nossa criança esteja cada vez mais construindo habilidades, estamos, na verdade, desconstruindo o mundo infantil. Ao desejarmos que crianças vivam como os adultos, estamos dificultando a vida da criança. Precisamos estar atentos a isso. É preciso reconhecer a criança como ser de alto potencial de aprendizagem e com capacidade de se relacionar com o meio, pois é isso que a torna tão especial. Mas não podemos privá-la da infância!

Referência: Dorneles, Leni Vieira. Infância que nos escapam. Petrópolis, Ed. Vozes, 2005.

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