INFÂNCIA
E PSICANÁLISE:
um passeio no pensamento de Dolto, Mannoni e Volnovich
Desde os primórdios
da psicanálise, Freud tinha como foco de atenção o infantil existente
no adulto, e que podia ser encontrado nas raízes da neurose.
Levou pouco tempo para
Freud perceber a possibilidade e a importância do
trabalho com crianças.
A teoria freudiana estruturou
toda ideia existente sobre a infância: havia uma
concepção de infância antes de Freud e há outra após os estudos de Freud. A visão da infância sofreu uma abertura de sentidos
sobre quem somos,
como nos tornamos adultos, a importância dos primeiros anos da vida para a
estruturação subjetiva.
Sabemos que a vivência da criança nesse processo de estruturação do ser, será
determinante para as projeções na vida adulta. Seria dizer que somos como
adultos aquilo que nos foi dado na vida infantil, durante o nosso processo de
formação. O adulto de hoje, é reflexo da criança de ontem. Há sim essa relação
direta entre a infância e a fase adulta do sujeito. Dessa forma é que Freud de
pronto entendeu que a análise da criança não só é possível, mas acima de tudo
permite já na infância a buscarmos soluções para as aflições do aparelho
psíquico.
A herança teórica de Freud
é o
que abre caminho para a prática psicanalítica com crianças,
que hoje encontra-se completamente estabelecida e aceita. Há no mundo, clínica e profissionais
focados inteiramente em buscar ajudar crianças que se encontram em estágios
diversos de sofrimento. Maud Mannoni (MANNONI, 1985)
chega a afirmar que a “psicanálise de crianças é a psicanálise”, sua afirmação aponta para a importância do trabalho realizado com crianças para até mesmo compreendermos a estruturação
subjetiva e as psicopatologias, sua origem e seus
desdobramentos.
Assim, na sua visão a psicanálise com crianças torna-se na essência a melhor
forma de se fazer psicanálise. Não há, portanto, qualquer prematuridade em
demandarmos seções terapêuticas em crianças que precisam de ajuda.
Não há dúvidas de que a clínica com crianças exige mais do profissional.
Em termos
práticos diria mais flexibilidade, habilidade, paciência, maior conhecimento do desenvolvimento e do mundo simbólico das crianças,
cujo universo fantasioso está tragado por esse elemento simbólico.
Françoise Dolto (DOLTO, 1985)
afirmava que para um psicanalista de crianças se faz
necessário “uma grande familiariedade com o inconsciente”, com isso compreendo uma análise pessoal profícua e profunda,
onde o profissional deverá estar atento às múltiplas linguagens através das
quais as crianças irão se manifestar. Ler essas linguagens e entender o mundo
simbólico da infância é essencial.
Dolto em seus seminários costumava fazer esse alerta: “aqueles que postulam
tornarem-se psicanalistas
de crianças muitas vezes acreditam que é mais fácil do que atender adultos. Na
realidade, é muito mais difícil”. O trabalho com crianças guarda
especificidades que torna
complexa a questão da análise.
A especificidade
da psicanálise com crianças consiste essencialmente na presença física dos pais na vida do analisando.
É com o olhar do adulto que a criança se depara ao sair de nossos consultórios.
Numa análise de um adulto – sem grandes comprometimentos
– sabemos que existe uma
distância destes com seus pais, que podem até mesmo ocupar um lugar de destaque
em
suas fantasias, mas o recalcamento já agiu e o sujeito reconstrói
suas lembranças da infância com sua
parcela de idealização, tristezas, alegrias ou ódio. E nessa reconstrução
o sujeito vai buscar sua
história e acertar suas contas. Na clínica com crianças, os pais estão presentes e suas transferências também.
Daí a necessidade da inserção dos pais no processo analítico. Sabemos que a
criança é espelho dos pais e certamente a transferência é tão forte que a
vinculação dos pais no processo de análise, garante mais qualidade assertiva ao
processo.
Segundo Volnovich:
“o sintoma é suporte e mensagem na criança da conflitiva individual, familiar e sócio-política-institucional, e constitui a essência de uma possível psicopatologia infantil.” Continua ele “a cura psicanalítica consiste em articular o sintoma com o
desejo reprimido, o que é denominado desvendar o sentido, articulação através da qual
é possível assumir a própria história. ”
(VOLNOVICH, 1991,
p.76)
Como coloca o autor, um sintoma é um conflito referido a um outro, e assim sendo, no
tratamento psicanalítico seremos testemunhas do deslocamento do sintoma (na transferência) de
um significante a um outro. Isto ajuda a compreender melhor um fato bastante visível na clínica
com
crianças, quanto ao rápido desaparecimento dos sintomas iniciais, o que Volnovich chama de
“curas defensivas” – o que não seria outra coisa senão a constatação da virada dentro do campo
transferencial.
Quando os pais chegam para pedir ajuda, percebemos um sentimento de impotência, de
culpa ou fracasso, geralmente essas frustrações aparecem em seus comentários ou ações. Um pai
que se encontra culpado seja pela doença do filho, seja pela sua própria doença.
De certa forma, muitas vezes a doença do filho apenas reside em seu
inconsciente, não sendo ele o doente de fato. Apenas vítima de uma
transferência. Precisamos então de delimitar o paciente, ou seja, aquele que de
fato será o nosso objeto de análise.
Depois de delimitado o paciente, sendo mesmo a criança, devemos conversar com os pais sempre que existir uma demanda explícita ou implícita – ou seja, aquela que aparece através de certos “atos” – tais como: a falta de pagamento, o esquecimento do horário, deixar a criança esperando na saída, ligar para o analista para contar fatos da rotina, etc. Esta entrevista feita no decurso do tratamento deve ter a presença, ou pelo menos o consentimento
da criança. Conforme a idade e a situação, há
crianças que preferem não estarem presentes, nestes casos considero necessário um relato desta
entrevista para o paciente. Mas, as entrevistas familiares no decurso do tratamento são feitas em
geral pela demanda e com a criança.
Numa análise
o psicanalista
está ali para
servir
à transferência
das
pulsões
do
passado, ou seja, para fazer ressurgir aquilo que permaneceu enterrado e que ainda causa problemas
atualmente, e para advir aquilo que nunca teve lugar no curso do desenvolvimento, por não ter sido
falado, colocado em palavras. Portanto, seu trabalho concerne
ao
imaginário, aos fantasmas, e não à realidade.
Quanto às peculiaridades
da transferência
na psicanálise de crianças, percebo que esta constitui um campo múltiplo onde estão envolvidas não só as crianças, mas também os pais ou responsáveis da criança. A transferência pode ser escutada nas queixas, nos lamentos e reivindicações destes, assim como quando estes somem e fica a impressão de que só a criança está
no tratamento.
A transferência é múltipla, mas nunca tem
um caráter de unidade; é comum divisões,
enquanto um pai pode se encontrar em transferência positiva o outro pode estar em transferência negativa. Lidar com essa falta de unidade é um trabalho que exige muito do analista, mas acredito na
impossibilidade de realizar
um tratamento de criança desconhecendo
a palavra dos pais ou
de um de seus representantes, incluídos no nível transferencial em
jogo.
Neste sentido se faz necessário na psicanálise de crianças a interpretação na transferência –
e muitas vezes da
transferência – na
medida em
que, estando
constituída
por um elemento imaginário, constitui um
empecilho
ao avanço
do
discurso, e é através da interpretação precisamente que se torna possível aproveitar o elemento simbólico presente em
toda
transferência.
Isto constitui o trabalho do analista.
Entendo a enorme pressão por parte dos familiares
(pais) no sentido da brevidade da terapia, de forma a
ser eficaz e de preferência
que se mantenham apenas
observadores e não
atores;
e se
possível, com uso de medicamentos para
acelerar o processo.
Pressa, resultados rápidos, diagnósticos e prognósticos definidos... isto tudo me faz pensar
nas
diferenças entre uma psicanálise e outras psicoterapias.
A maioria das psicoterapias se apoia numa concepção da pessoa baseada em conceitos da
psicologia. A ênfase é colocada nas funções do ego e o trabalho é realizado essencialmente sobre os comportamentos.
Nestes tratamentos o
sintoma é
colocado
em primeiro lugar e seu
desaparecimento é o principal objetivo; a transferência
neste caso acaba funcionando como uma possante alavanca para o desaparecimento do sintoma.
O trabalho terapêutico do
psicanalista passa por essa esfera. Mas, o que mesmo fará um Psicanalista no
tratamento de neuroses na fase da infância?
Com o tempo e a experiência,
sua prática produz efeitos no grupo, através de intervenções,
publicações, supervisões, ou seja,
os fenômenos de transferência ligados a
relação analisando
analista deslocam-se progressivamente
para o grupo de trabalho: da transferência para o analista passa-se para a transferência para a análise, o efeito de seus avanços teóricos práticos surgem no
coletivo, participando, assim, da transmissão em psicanálise.
Em síntese, a qualidade do psicanalista depende de vários fatores: do ponto em que se o sujeito se encontra no seu trabalho pessoal (psicanálise ou psicoterapia), de seu
percurso teórico, e enfim, da qualidade de sua inserção no grupo que frequenta. São esses três
pontos que diferenciam um profissional qualificado de um adulto de “boa-vontade”.
Referências.
DOLTO, F. Seminário de psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1985.
. Seminário de psicanálise de crianças 2. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1990. MANNONI,
M.
A criança,
sua “doença” e os outros. 3ª.ed, Rio de
Janeiro: Zahar
Editores. 1985.
VOLNOVICH, J. Lições introdutórias à psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1991.