Há
muito, o entendimento e a análise de loucura têm levado o homem a questionamentos. O que seria
loucura? Segundo a Psicologia, a loucura é uma condição da mente humana,
“habitada” por pensamentos “anormais”. De acordo com o dicionário Houssais da Língua
Portuguesa, a loucura pode ser definida como “distúrbio ou alteração mental
caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo de seus
métodos habituais de pensar, sentir e agir”. Para a Medicina, mais
especificamente a Psiquiatria, a loucura é resultado de alguma doença mental.
Fica evidente aqui a separação entre o normal e o patológico. Para esta ciência,
a loucura é diagnosticada por profissionais e o tratamento está baseado na
supressão dos sintomas e contenção dos pacientes que se encontram em surto.
Se
mergulharmos no campo filosófico, o “ser louco” faz parte de toda uma discussão
em que a relatividade assume papel de extrema importância. Para os filósofos, a
condição de “ser louco” depende, e muito, da sociedade, onde vive o indivíduo.
Depende também da época, dos valores éticos e morais, da religiosidade etc. Assim, as condições históricas e
culturais servem como “baliza” para o julgamento do “ser louco”.
Para
a psicanálise, a “loucura” não parte do pressuposto
da divisão entre o normal e o patológico. Freud encarava a loucura como
elemento que faz parte de cada um e está, de certa maneira, no inconsciente de cada um
de nós. Jacques Lacan considerava a loucura não como fragilidade humana, mas sim
virtualidade permanente de uma falha
aberta na sua essência. Em um sentido mais amplo, a psicanálise entende a loucura,
o delírio, as alucinações como elementos que não devem ser eliminados ou suprimidos.
Seria então a loucura uma questão de ponto de vista sociocultural
do que propriamente uma doença? Há no meio intelectual a ideia de que “loucos”
são todos os que de alguma forma ousaram desafiar as regras “normais” impostas
por valores a uma determinada sociedade. Seriam os “loucos” aqueles assim
taxados por pessoas detentoras do poder social ou guardiãs dos costumes morais
da sociedade? Essa seria uma bela
discussão, mas não me prenderei a ela. Neste trabalho, busco o objetivo mais íntimo de meu pensar, que seria responder a esta questão: o que é
loucura?
Ao
assistir a filmes produzidos no final do século XX e no começo deste século,
como “Garota interrompida”, “Uma mente brilhante” e “Em nome de Deus”, por exemplo, percebo que há uma enorme crítica
à forma como a sociedade ocidental do séc. XX se relaciona com os desvios de
conduta de pessoas, cujo tratamento para delírios sempre foram desumanos e
extremamente violentos. Acredito que a obra “A história da loucura na idade
clássica” (Foucault, 1997) trata profundamente dessa questão e nos ajuda a dar a
resposta à problematização deste artigo. Em sua obra, o filósofo percorreu 150
anos de história, para analisar os mecanismos e as práticas do objeto da
loucura e a forma como ela era encarada em seu tempo. De forma muito
interessante, termina o livro deixando claro que o “louco” é também detentor de
uma verdade, mas essa verdade está oculta e, como ele não consegue alcançá-la,
então ele clama desesperadamente para
que, enfim, seja revelada.
Ao
aprofundar a sua análise sobre loucura, Foucault afirma que, ao longo de nossa
história, a exclusão do louco teria sido na verdade uma forma de proteger a
base do poder constituído. Na visão deste filósofo, “louco” é todo aquele que não aceitou a
vontade de verdade imposta pelo poder. Nessa linha de interpretação da loucura,
está o grande literato brasileiro, Machado de Assis. Na publicação de O Alienista, em 1882, Machado narra a
história de Simão Bacamarte, (o alienista) médico psiquiatra que fundou um
manicômio com a intenção de cuidar de “loucos”. Prende 80% da população sob a
alegação de serem todos loucos. Na lida com esses loucos, Bacamarte descobriu
que todos aqueles possuíam na verdade outro defeito: eram avessos a aceitar as
regras da sociedade como eram impostas e não se adequavam
ao sistema. Ao aperceber-se disso, deu alta a todos os loucos e assumiu
para si essa condição ao internar-se lá,
onde viria a morrer anos depois.
Certamente,
Foucault não leu Machado de Assis, mas
se o tivesse feito veria aí a força do “discurso dominante” na imposição de uma
“normatização de conduta social”. Tanto em Foucault, como em Machado de Assis,
o louco é aquele que se coloca contra a lógica da maioria. A loucura seria,
então, o produto de um mundo e de um tempo e não exatamente o distúrbio
patológico endógeno da mente humana. Nós podemos encontrar uma resposta com
aqueles que perderam a razão.
A
indagação acerca do que é a loucura nos impulsiona a um outro questionamento: O
que teria ocorrido para alguém ficar
assim? As pessoas ficam assim quando não chegam a criar uma relação funcional e
prática com a sociedade e também com a realidade. Na verdade, os chamados
“loucos” são os que criam uma sociedade que, para eles, é de fato uma
realidade. Eles ficam loucos por defesa, para não perderem a razão. De certa
forma, em um movimento dialético, essas pessoas são aquelas que não aceitam a
saúde mental, pois entendem que ela está associada aos que têm comportamento
previsível, aos que são sempre obedientes e aos que nunca tiveram coragem
de pensar o impensável. Afinal,
pensar é um grande perigo, é “coisa de louco”. Como escreveu Raul Seixas: “a
arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal.”
A
normose da vida pode revelar a verdadeira loucura, embora os loucos sejam sempre os que transgridem a ordem. Assim,
seria a loucura a tese da dialética do normal x anormal? Seria a negação do ideal da “perfeição lógica”
dos que vivem em um mundo normatizado?
Parece que voltamos à questão inicial. E isso se dá, porque o desejo
de querer conceituar a loucura nos leva, constantemente à luz do pensamento
psicanalítico a retomar a problematização, exatamente por não aceitarmos a visão cartesiana
ou mesmo bipolar entre sadio e louco / normal e anormal.
Nos
últimos 10 anos, o problema da instituição psiquiátrica tem sido muito
discutido. Em 1987, nasceu o movimento
nacional da luta antimanicomial, negando os hospitais psiquiátricos
terapêuticos aos portadores de transtornos psíquicos. Seria o fim da loucura?
Será que os transtornos psíquicos passaram a ter um novo olhar? Certamente é o que está
acontecendo. Surge na sociedade e até entre os especialistas a questão. Como
exemplo disso, posso citar a peça teatral “Delírio”, escrita e dirigida pelo
psicólogo Antonio Rayan, que trata da
real existência da doença mental e traz também um curioso paralelo entre a moderna
psiquiatria e a antiga. Na peça, Rayan deixa a ideia de que se existe a
loucura, então somos todos loucos. Toda “visão nova” sobre a questão da loucura
nos leva a refletir se existe mesmo a loucura ou se ao longo dos tempos
encontrou-se inadequadamente um lugar para loucura, visto que os tidos como
loucos eram alienados ao sistema vigente.
Outra
reflexão que o tema sugere seria abrirmos as janelas da demência (para melhor
entendê-la), a partir do seguinte questionamento: existe lucidez no delírio? Se
não, o legado de Nietzche não tem valor para a humanidade? Sua obra Ecce Homo, doze anos antes de sua morte,
é um testamento legítimo do limiar da demência. É preciso ler a obra para
entender cabalmente a visão de tragédia de Nietzche e a coragem de um gênio com
objetiva exatidão tornando absolutamente inútil o que sobre ele foi escrito
depois. Há nele uma demência lúcida a ponto de produzir obras fantásticas: na
verdade, em Nietzche, a loucura foi apenas um passo para que ele pudesse se
superar e transcender. Seria obra de um louco? Como o mundo acadêmico se
debruça sobre essa e outras obras?
Vista
como doença mental, a relação que se
desenvolve com a loucura pode variar muito de cultura para cultura. Ora, se a
loucura e suas razões, interpretações e aceitação varia de cultura e de espaço
geográfico, como é possível afirmar que ela seja um distúrbio da mente? Pode
ser, na verdade, um “desvio” ou uma “acomodação” sociocultural. Assim sendo, a
Psiquiatria poderia ser uma
“polícia moral” e de fato guardiã de valores dominantes. Assim sendo, neste
trabalho, estamos propondo uma maior discussão nessas análises acadêmicas.
Hoje,
a Ciência faz uma distinção entre loucura e doenças mentais. Os psiquiatras não
se utilizam de temas como loucuras e nenhuma das atuais classificações dos
distúrbios psiquiátricos os inclui. A loucura que a Psiquiatria trata é chamada
de Psicose, uma distorção do pensamento e do senso de realidade que pode
prejudicar a vida do paciente. Mesmo assim, com toda modernidade e
reformulações, protestos e avanços conceituais, a Psiquiatria entende ser o
medicamento a forma mais eficiente no cuidado dos transtornos.
Diante
de toda essa reflexão sobre o que seria loucura, a pergunta que fica é: Quem é
que definiu a palavra normal? Teria sido um louco? Uma pessoa muito feliz pode
parecer, aos normais, um louco. Como disse Freud, a loucura existe em cada um
de nós e, com certeza, mesmo estando presa em nosso subconsciente,
vez ou outra dá uma escapadinha e nos surpreende. Talvez seja a hora de
começarmos a lidar melhor com as nossas próprias neuroses, manias e “loucuras”.
E, sobretudo, de aceitarmos as nossas diferenças.
· Bibiliografia
Especial sobre Nietzche –Portal
Terra Networks. Seção Educação.
Frayze – Pereira, João. O que é Loucura, Brasiliense, 1994.
Foucault, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica,
1997. São Paulo, Perspectiva.
Assis, Machado de. O Alienista. São Paulo, Saraiva.
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