O
outro em meu sujeito: “personagens distintas entre si e de mim”
José
Romero
“escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como
sempre tenho sido, sozinho como sempre serei”.
(Fernando
Pessoa, o Livro do Desassossego)
Fernando Antonio
Nogueira Pessoa, ou simplesmente Fernando Pessoa, foi um homem culto.
Certamente a maior expressão do modernismo português. Buscou-se fazer-se
compreender, utilizando-se da literatura como instrumento da sua verdade.
Mostrou-se inteiro ao mundo, não por si somente, mas através da criação de seus
heterônimos, escritores criados pelo escritor / poeta como forma de se fazer
ler em suas indagações e conflitos.
Em um sentido
amplo, o autor faz uso de linguagens e personalidades diferentes, na pessoa de
cada Heterônimo como meio de expressão dos complexos, recalques e
contraditórias existentes em seu aparelho psíquico. Fernando Pessoa, no seu
inconsciente tem guardado, que é através da literatura que ele tentará conviver
com todo o seu desespero em seus “múltiplos eus”. Como ele mesmo deixou
registrado: “há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente”.
A complexidade e
grandiosidade da Obra de Pessoa, principalmente a sua quase autobiografia, o
livro do desassossego, é uma maravilhosa oferta de seu mundo psíquico e de suas
dores, desejos e frustrações. Por isso mesmo, sinto-me atraído para buscar de
forma mais profunda, salientar as angústias psíquicas desse que no meu entender
é o maior escritor da língua portuguesa do século passado. Não quero aqui,
debruçar-me sobre a sua obra e buscar interpretá-la a luz do conhecimento
literário, mas sim mergulhar no homem Fernando Pessoa, na sua sexualidade, no
sujeito e suas projeções, bem como na transferência de seu eu para eu de cada
heterônimo que é a voz de cada eu que o autor convivia na complexidade de seu
mundo interior.
“Não sei quem sou,
que alma tenho. / Sinto crença que não tenho. / Sinto-me múltiplo / ... uma
suma de não-eus sintetizados num eu postiço.”(1)
Seria os heterônimos a multiplicação
da genialidade do poeta ou a despersonalização de seu eu? Quais seriam os
componentes dos referidos heterônimos? O próprio Pessoa, tinha plena
consciência da gênese de seus heterônimos. Em carta enviada a Adolfo casais
Monteiro, ele deixou claro que seus heterônimos manifestam-se em três
dimensões: psiquiátrica, a história direta dos heterônimos e a gênise dos
heterônimos literários. Aqui me interessa mais a parte psiquiátrica. Ele afirma
que a origem mental de seus heterônimos está na “tendência orgânica para a
simulação. De certa forma, o que aqui temos é a fuga. É ele mesmo quem
considera a despersonalização como um traço de histeria. Ele afirma: “estes
fenômenos fazem a explosão para dentro...”(2)
Com uma tendência fictícia de ver a
vida: “... dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente
sinto com a imaginação...”(3)
Fernando Pessoa se “desconstrói” e se
“reconstrói” na pessoa fictícia de personagens com traços de personalidade que
distinguem dos traços da própria pessoa. Ou nada disso, seria o próprio Pessoa
se personificando em cada Heterônimo que passa a expressar por si em seus
desejos e angústias. Assim Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, são
na essência a fala interior de Fernando Pessoa. Segundo o próprio autor, ele
consegue ser o outro, sem deixar de ser ele mesmo. Ainda que Fernando Pessoa
afirme que não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos dele, por
muitas vezes eles exprimirem sentimentos que nunca teve o próprio autor no
campo da psicanálise é impossível imaginar que os personagens estariam livres
da “contaminação” das experiências de Pessoa. Essa construção de outros, não
pode ser conseguida sem que haja neles elementos de vida do próprio autor.
Em psicanálise, essa transferência de
personalidade, pode ser entendida como um caso de projeção. Embora o conceito
de projeção compreenda diversas acepções que são mal distinguidas. Ele deve ser
entendido como um comportamento onde o sujeito mostra pela sua atitude que
assimila determinada pessoa a outra: diz-se então, por exemplo, que ele
“projeta” a imagem do pai sobre o patrão. Também, o sujeito atribui a outros as
tendências, os desejos, etc., que desconhece em si mesmo.(4)
Em carta escrita à
Adolfo Casais Monteiro, em 13 de janeiro de 1935, Fernando Pessoa explica a
forma como ele mesmo enxergava os seus Heterônimos: “passo agora a
responder à sua pergunta sobre a gênese dos meus heterônimos.
Vou ver se consigo responder-lhe
completamente.
Começo pela parte
psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos histérico, se sou, mais
propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque
há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra
no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus
heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e
para os outros – mentalizaram-se em mi; quero dizer, não se manifestam na minha
vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e
vivo – os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenômenos histéricos
rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais
histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou
homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim
tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant
bien que mal, a origem orgânica do meu heteronismo. Vou agora fazer-lhe a
história directa dos meus heterônimos. Começo por aqueles que morreram, e de
alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da
minha infância quase esquecida.
Desde criança tive
a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e
conhecidos que nunca existiram. (não sei, bem entendido, se realmente não
existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não
devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu,
me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história,
várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas
daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência,
que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando
um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira
de encantar.
Lembro, assim, o
que me parece ter sido o meu primeiro heterônimo, ou, antes, o meu primeiro
conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem
escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda
conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me,
com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me ocorre mas que o tinha
estrangeiro também, que era, não sei em
quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças?
Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as
relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram
realidades.
Estas tendência
para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente,
nunca saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já
em maioria. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo
ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente,
espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja
história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente
eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos
que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância,
oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... e tenho saudades deles.(5)
“Fernando Pessoa
não existe, propriamente falando”. Quem nos disse foi Álvaro de Campos, um dos
Heterônimos do poeta. No livro Do Desassossego, obra inacabada de Fernando
Pessoa. O que temos é um livro negação, pura subversão, o livro desespero,
escrito em seu mais profundo desassossego. Muito antes dos “desconstrutivistas”
quiseram mostrar a despersonificação do poeta Fernando Pessoa, foi ele mesmo
que através de sua genialidade viveu na carne a sua própria anulação. Nessa
fantástica obra, o autor nos presenteia com uma autoanálise. Vive e relata no
papel o drama de que os acadêmicos querem elucidar. Utilizando-se do texto,
sobre o texto o mundo dele em fragmentos nos convida a imaginar que o autor,
sem nenhum interesse em compor uma obra literária, apenas faz uso da escrita
para se denunciar ao mundo. Como ele mesmo salienta: “tudo quanto o homem expõe
ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo.(6)
A necessidade
emocional de se expressar em uma sociedade ultraconservadora, católica e em um
período em que o fascismo domina o cenário político e social da Europa, claro
que não é uma coisa simples. Viver nesse contexto, uma crise existencial
profunda, parece não existir espaço. Fernando Pessoa é homem de seu tempo,
amargo em suas crises e mais do que isso, uma pessoa solitária que via na arte
de escrever uma forma de extravasar as suas frustrações. Seu ser é nitidamente
conhecido como alguém que convive com enorme perturbação, destiladas no
narrador retórico e no poeta recatado em seus valores.
A crise existencial,
a abstinência sexeral com a impossibilidade de possuir outro corpo, na dimensão
do amor, torna Fernando Pessoa, um enorme recalcado. Seu desassossego é na
verdade uma perturbação de ordem existencial tão grande que o levou a descrença
na fé, por ele entendida como uma “produção doentia”. Conviver com um eu tão
conturbado parecia a ele uma tarefa muito difícil, daí a clara busca de expor
seus conflitos, através de personagens criados como canais de comunicação com o
mundo exterior. O oculto, se revelando no outro “que não é ele”, garantia o
conforto de suas aflições em noites embriagadas no álcool e nas emoções
conflituosas.
Bibliografia:
- Cleonice
Berardinelli (org.) Fernando Pessoa – obras em prosa, vol. Único. Ed. Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 2004.
- Idem,
pag. 95.
- Obra
poética. Fernando Pessoa. Ed. Nova Aguilar S. A, 1992, pág. 165.
- Laplanche
e Pontalis. Vocabulário da psicanálise, pág. 375.
- Trecho
da carta de Fernando Pessoa, onde esclarece a origem de seus heterônimos. Carta
escrita à Adolfo Casais Monteiro – 13 Jan. 1935. CX Postal 147. Lisboa.
- Pessoa. Fernando, Livro do Desassossego.
Ed. Companhia das letras, trecho 148.